Vicente Guató: a personificação de um povo

Mestre Vicente pescando no Rio Cuiabá - MT. © Lautaro Actis, 2021.
Mestre Vicente pescando no Rio Cuiabá - MT. © Lautaro Actis, 2021.

Túlio Paniago

A viagem de Cuiabá à casa de Vicente Guató leva aproximadamente 12 horas, divididas entre carro e barco, em um itinerário composto por asfalto, estrada de chão, dezenas de pontes e muita água. O isolamento geográfico emoldura o isolamento étnico, uma vez que o ancião é possivelmente o único falante vivo de uma língua praticamente morta. 

Filho de pai e mãe Guató, é um legítimo representante desta etnia de canoeiros nômades cujos espaços tradicionais de perambulação estendiam-se pelo Pantanal mato-grossense, sul mato-grossense e até parte da Bolívia, abarcando as bacias dos rios Paraguai, São Lourenço e Cuiabá.

Paisagem da Serra do Amolar e rio Paraguari vista desde o alto do Morro do Caracará. © Lautaro Actis, maio de 2021.

Originário destas planícies alagadas, o chamado “povo das águas” foi referenciado pela primeira vez no século XVI, porém, alguns séculos depois, mais precisamente em 1957, foi considerado extinto. E só viria a ser identificado novamente no fim da década de 1970.  

De acordo com o antropólogo francês Pierre Clastres, “enquanto o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito”. A experiência Guató engloba os dois tipos de extermínio. As doenças trazidas pelos não-indígenas no final do século XIX reduziram drasticamente a população. 

Posteriormente, a partir da década de 1940, seus territórios foram expropriados em favor de fazendas de gado. Reduzidos e acuados, migraram para pontos de difícil acesso do Pantanal ou se alocaram em periferias das cidades mais próximas, como Corumbá, Ladário, Poconé e Cáceres. Outros foram explorados como mão de obra em suas próprias terras invadidas pelos colonizadores. E assim os costumes e a língua se dissolveram no decorrer da história.

Vicente foi um dos que trabalhou durante anos em fazendas, mas ainda conserva os tradicionais modos de viver de seu povo e hoje personifica uma cultura que resiste a duras penas. Pesca na mesma canoa de seus antepassados, porém o peso da idade o obrigou a acrescentar um pequeno motor para aliviar os braços. Vive às margens do Rio Cuiabá, no coração do pantanal, em um casebre que outrora dividiu com a mãe, dois tios e dois irmãos.

Vicente Guató navegando em sua canoa com auxílio de rabeta. © Gabriele Viega Garcia, maio de 2021.

Os familiares também falavam Guató. Júlia (mãe) e José (tio) estão enterrados próximos à casa, na sagrada região do morro do Caracará. “Deve ter algum perdido por aí”, diz Vicente sobre a possibilidade de ainda existir Guató que também conservem os modos de viver, conhecimentos tradicionais e a língua da etnia.

Território ancestral Guató – Vista para a Baía e Morro do Caracará em época de cheia no Pantanal, com arroz nativo maduro para colher. Parque Nacional do Pantanal Matogrossense – ICMBio. © Gabriele Viega Garcia, julho de 2015.

Atualmente existem dois territórios Guató demarcados. A Terra Indígena Guató-MS e a Terra Indígena Baía dos Guató-MT reúnem, juntas, uma população de aproximadamente 200 pessoas. Embora estes indivíduos compartilhem traços genéticos e algumas práticas ancestrais, é constatável que a língua e outros aspectos culturais já não fazem parte do cotidiano, resultado deste processo de apagamento de memórias e saberes. 

E devido à condição de isolamento de Vicente, as perspectivas em relação à transmissão destes conhecimentos não são animadoras. Ele nem sequer considera os indígenas dos territórios demarcados como “guató puros” e só tem contatos esporádicos com moradores da comunidade ribeirinha Barra do Rio São Lourenço e com brigadistas do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsáveis pela manutenção do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense.

Vicente Guató limpando Pacú no barranco do rio Cuiabá (São Lourenço) na época de Cheia do Pantanal. © Gabriele Viega Garcia, julho de 2014.

Além do mais, nunca teve filhos e a única parceira o abandonou há décadas, portanto vive sozinho há muito tempo, ou melhor, na companhia de pelo menos 30 gatos. Ele é uma espécie de eremita que divide a solitude com os felinos, e estes coabitam o espaço desde a época em que a mãe era viva. A primeira gata, que já chegou prenha, foi trazida por uma barca que atracou à margem da casa. 

A fêmea desembarcou sem ser percebida e por ali ficou. Sua prole deu continuidade à linhagem, portanto todo o bando descende desta mesma matriarca. O velho Guató utiliza estas embarcações para viagens pontuais à Corumbá-MT. Nestas ocasiões, ele costuma gastar sua parca aposentadoria com mantimentos, principalmente materiais de pesca (linhas, chumbadas, anzóis…), alimentos básicos (óleo, café, arroz…) e bebidas alcoólicas (cerveja e cachaça).

Arroz nativo do Pantanal utilizado no passado pelos Guató em sua base alimentar. © Gabriele Viega Garcia, maio de 2021.

As necessidades restantes são suprimidas pelo próprio modo de vida. A casa, até recentemente, não era abastecida por rede elétrica. Agora ele possui uma geladeira para conservar os alimentos e lâmpadas para iluminar, mas nada de televisão, celular, máquina de lavar ou qualquer outro item que funcione à base de eletricidade. Também dispensa fogão e cama, de modo que dorme em uma rede e cozinha tudo em uma fogueira acendida diariamente. 

Ele também não faz uso de repelentes e nem telinhas em portas e janelas para impedir a entrada de insetos. Vale lembrar que os mosquitos pantaneiros, a partir do final da tarde, literalmente atacam as pessoas e suas picadas são bem mais potentes que a dos pernilongos urbanos, sendo capazes de sugar sangue até mesmo através de calças jeans. “Meu couro já tá curtido”, diz ele em tom bem humorado.  

Sua alimentação é à base de peixes da bacia do rio da Prata, principalmente pacu e piranha, que são pescados com frutas locais. Ele também planta mandioca, batata, abóbora, banana e manga, que complementam seu sustento. Domina uma técnica ancestral de conservação dos peixes, que chegam a durar semanas submersos em banha de jacaré.

Mandioca plantada por Vicente em seu espaço de roça. © Gabriele Viega Garcia, novembro de 2021.

O fotógrafo e naturalista Hércules Florence descreveu, entre 1825 e 1829, as exímias habilidades Guató: “Vivem quase sempre sobre a água […] A borda da canoa fica com dois dedos acima d’água, o que não os impede de manejar com a maior habilidade as flechas para fisgar peixes ou traspassar pássaros. Matam, além disso, jacarés, que lhes servem de principal alimento, porque deles nunca há falta. Em terra não são menos destros caçadores”.

Pacú, base alimentar do Seu Vicente. © Lautaro Actis, maio de 2021.

Como se percebe, além da língua, ele também conserva outros conhecimentos ancestrais, como a cultura material da canoa, ganzá, remo, zinga, arpão, vara de pesca, zagaia, além de trabalhos em couro e traçados. A pesca, a caça e os costumes culinários característicos dos Guató também compõem o seu cotidiano. Dentre tantos saberes manuais de origem indígena, chama atenção a confecção de violas de cocho, instrumento musical típico de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Instrumentos que o Mestre Vicente Guató utiliza para pescar e caçar. © Gabriele Viega Garcia, novembro de 2021.

O curioso é que as violas, assim como as canoas Guató, compartilham o complemento “de cocho”, como fosse uma espécie de sobrenome em comum. Trata-se de uma referência aos cochos, recipientes onde são servidos alimentos aos animais, isso porque estes três objetos guardam semelhanças em suas respectivas feituras, afinal todos são talhados a partir de uma única peça de madeira. 

Mas a viola de cocho confeccionada por Vicente guarda uma excentricidade. Embora apresente formato próximo ao do instrumento convencional, ela possui um furo no tampo. É bem verdade que a viola sem furo é recente, afinal era comum fazer uma discreta perfuração, algo entre 0,5 e 1 cm de diâmetro, mas a dele possui um furo grande, comparável ao do violão, o que confere ao instrumento estética e som muito particulares.

Mestre Vicente Guató tocando sua viola de cocho. © Gabriele Viega Garcia, novembro de 2015.

As tantas idiossincrasias de Vicente fizeram com que fosse objeto de artigos avulsos, trabalhos científicos e produtos audiovisuais. Curiosamente, segundo os linguistas Gustavo Godoy e Bruna Franchetto, ele é neto de João Caetano, que foi uma das principais fontes do pesquisador alemão Max Schmidt, responsável por uma densa descrição etnográfica dos Guató no início do século XX.

Segundo Schmidt, em consideração que provavelmente também se refere a João Caetano, “somente usando de muita paciência pude convencer os Guató, que são sob outros pontos de vista muito agradáveis, de comunicar-me alguns trechos na sua língua com tradução portuguesa”. Esta aparente resistência em traduzir de uma língua para a outra, absolutamente compreensível por razões históricas, não se aplica ao neto, pelo menos quando se trata de pessoas de sua confiança.

Vicente não se incomoda em dizer, na língua Guató, os vocábulos correspondentes para palavras em português, inclusive gosta de rememorar do nome original e os de seus familiares, bem como de batizar visitantes em sua língua materna, na qual os nomes próprios são tirados da natureza, principalmente de animais e plantas. 

De acordo com o poeta Manoel de Barros, que conviveu com descendentes da etnia, a gramática do povo das águas é a mais rica em essência, e acrescenta que “a língua dos índios Guató é múrmura: é como se ao dentro de suas palavras corresse um rio entre pedras”.

Pantanal Matogrossense. © Lautaro Actis, maio de 2021.

Vicente conhece bem o caminho dos rios, sejam eles figurados nas palavras de sua língua mãe ou materializados nas águas pantaneiras. Ele é um dos poucos que sabe chegar aos misteriosos aterros (terrenos elevados para não serem inundados) edificados em tempos imemoriais, talvez até por povos anteriores aos Guató.

Arte rupestre de tempos imemoriais presente no Morro do Caracará. © Lautaro Actis, maio de 2021.

Em períodos de cheia, ele e a família migravam para estes lugares, onde faziam casas de palhas de acuri ou tucum para se abrigar temporariamente. Aliás, habitações como esta ainda são vistas em comunidades ribeirinhas razoavelmente próximas à casa do ancião, como na comunidade do Mangueiral.

Não por acaso a percepção Guató de tempo e espaço está intimamente relacionada aos ciclos de seca (de junho a novembro) e de cheia (de dezembro a maio). As fases da lua e os ventos indicam condições favoráveis ou não para a pesca e outras atividades.

Visto do rio Cuiabá (São Lourenço) desde o alto do Morro do Caracará. © Lautaro Actis, maio de 2021.

No que diz respeito ao tempo de vida, Vicente não parece se importar com a idade, nem sequer sabe o dia do nascimento. Estima-se que tem aproximadamente 75 anos, mas ninguém sabe ao certo. E aparentemente também não teme as circunstâncias da morte, pois sintetiza em uma frase repetida como mantra o que aos poucos lhe finda a vida: “o que mata é a saudade”.