Seu Tuti: Terra e Liberdade

Mestre Tuti, Chapada dos Guimarães - MT. © Lautaro Actis, 2021.
Mestre Tuti, Chapada dos Guimarães - MT. © Lautaro Actis, 2021.

Túlio Paniago


A poucos quilômetros de Chapada dos Guimarães, em uma pequena propriedade rural na região do Capão Seco, vive Nelson José Moreira, 71, o popular Seu Tuti, um dos poucos cururueiros e possivelmente o único mestre violeiro remanescente no município. Ele está há mais de quatro décadas com Joana de Azevedo Moreira, com quem teve duas filhas (Josenice e Josineide) e um filho (Josenildo), que já saíram de casa, mas a neta Lúcia Moreira Azevedo de Oliveira, 13, conhecida como Mika, ainda mora com os avós que a criaram.

Entrada ao sitio do Mestre Tuti. Sitio Alegre, Chapada dos Guimarães - MT. © Lautaro Actis, 2021
Paisagem do caminho até o Sítio Alegre, onde Mestre Tuti reside com sua família. © Lautaro Actis, fevereiro de 2021.

Tuti é muito respeitado por ser o mestre violeiro local, principalmente dentro das comunidades quilombolas da região (Ribeirão Itambé, Morro do Cambambe, Lagoinha de Baixo e Lagoinha de Cima). A música e as festividades nestas comunidades estão enraizadas na ancestralidade negra, de modo que estas práticas compõem sentidos de identidade e pertencimento à terra.

Todavia, por motivos de saúde, este senhor de fala simples e riso fácil já não confecciona as tradicionais violas de cocho, porém eventualmente ainda toca e canta – mesmo que seja só para se distrair – algumas toadas, cadências, trovas, versos e ladainhas que outrora embalaram festas de santos que reuniam toda a comunidade rural da região.

Mestre Tuti com suas duas violas de cocho. © Lautaro Actis, novembro de 2018.

Esta tradição foi herdada da mãe, Maria Ramos da Silva Filha, que nasceu e foi criada na mesma fazenda de onde o filho também nunca saiu. A família materna era responsável pelas festas de santo, das quais participou da infância à vida adulta. Estas celebrações aconteciam porque as pessoas do lugar, todas aparentadas e vizinhas, faziam muxiruns para preparar o solo para o roçado. 

Muxirum é uma palavra de origem tupi-guarani cujo sentido é de trabalho em grupo, daí a derivação “mutirão”. Trata-se de uma prática ancestral que permeia relações culturais de algumas comunidades tradicionais pantaneiras, quilombolas e indígenas. Este método coletivo marca todo o percurso do alimento, desde o trabalho com a terra até a divisão da colheita.

No caso em questão, os pequenos produtores locais dividiam o trabalho e socializavam a produção, afinal cada família plantava alimentos diferentes. “Eu fazia um muxirum de roçado e vinha aquele turmão de uns 30. Todo mundo junto derrubava no machado, queimava, carpia, arava e depois plantava feijão, arroz, milho… E aí depois eu tinha que ir em 30 muxirum, até pagar todo mundo que veio”, explica Tuti. 
Quando a data coincidia com o dia de algum santo do qual alguém era devoto, eles aproveitavam que estavam todos reunidos e estendiam o encontro noite adentro. Nestas ocasiões, após o dia de trabalho, seguiam na casa da pessoa que estava promovendo o muxirum para rezar, jantar e cantar cururu. Alguns inclusive já tinham datas fixas no calendário, como a própria Dona Maria Ramos, que todo dia 1º de janeiro reunia os vizinhos para trabalhar, orar, comer e festar.

Capela do Mestre Tuti em sua propriedade. © Lautaro Actis, fevereiro de 2021.

Como na música “Viramundo”, de Capinam e Gilberto Gil, os ritos da vida social se baseavam em “festa, trabalho e pão”, contudo a fé é um quarto elemento a ser acrescido nesta tríade. “É devoção, é nossa tradição, por isso que eu não troco de religião. Não ignoro a dos outros, mas não troco a minha”, salienta o católico Tuti, que se tornou exímio cururueiro e agricultor a partir destas vivências, além de ter aprendido de forma autodidata a arte da confecção de violas de cocho.

Entretanto, com o passar do tempo e o virar do mundo, o espaço e as relações foram se reconfigurando. A desmedida expansão do agronegócio desconsiderava fronteiras. Os grandes fazendeiros, na ganância de expandir cada vez mais seus lucros, compraram todas as pequenas propriedades vizinhas, culminando no isolamento social e geográfico da família de Tuti e Joana. 

“Foi entrando gente de fora e tudo foi minguando. Os daqui foram sumindo, morrendo, mudando, até que acabou tudo. Agora só tem fazendona pra todo lado. Só ficou nós aqui, os outros venderam tudo. E hoje em dia eles não têm nada, nem a terra, nem a casa e já gastaram o dinheiro. Só nós que não vendeu até hoje”, relata com pesar nas palavras.

Antes da invasão das lavouras, os moradores locais produziam com abundância e a fartura alimentar das famílias era plena, inclusive comercializavam o excedente, tudo graças à prática colaborativa do muxirum. As coisas mudaram de lá pra cá, embora a família de Tuti continue criando algumas vacas (leite), galinhas (ovos) e porcos (carne), além de plantar arroz, banana, mandioca e abóbora.

Fogão a lenha na residência do mestre Tuti. © Lautaro Actis, fevereiro de 2021.

Eles não passam necessidades, até porque recebem uma aposentadoria que os ajuda a arcar com despesas de energia, compras no mercado e remédios. No entanto, devido à extinção do muxirum, também já não desfrutam daqueles tempos de vacas gordas. “É que pra rico até boi pare. E pra pobre, nem vaca”, brinca Tuti. Seja como for, o ancião garante que não tem a mínima intenção de se desfazer da terra onde nasceu, foi criado e se tornou cururueiro.

Aliás, ele chegou a aconselhar o filho a aprender a tocar e produzir violas de cocho, sob argumento que, além de satisfatória, a atividade poderia lhe ser bastante rentável, e inclusive se colocou à disposição para ensiná-lo, mas o jovem não se mostrou interessado, assim como outros dois possíveis pupilos que também desistiram da nobre missão, levando o mestre à desoladora conclusão de que “ninguém mais quer aprender a fazer viola”.
Independente do interesse – ou a falta dele – por parte dos mais jovens, o fato é que o modo de fazer a viola de cocho é considerado, desde 2005, Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e inclusive este título revalidado em 2021. Todavia, quando Tuti começou a fazer seus primeiros instrumentos, no final da década de 60, não era uma atividade muito respeitada.

Mestre Tuti e sua Viola de Cocho. © Lautaro Actis, fevereiro de 2021.

Ele pontua que os métodos tradicionais hoje seriam abomináveis, isso porque as cordas eram feitas de tripas de quatis ou ouriços. No mais, tirando a substituição das tripas por linhas de pesca, todo o processo de feitura permanece o mesmo. Primeiramente, é preciso retirar a madeira (chimbuva, sarã, sangra d’água ou cedro) na lua minguante para evitar as “brocas”, que são insetos que deterioram o material.

“A minguante protege a madeira de caruncho. E não é só pra viola, madeira pra fazer casa é bom tirar na minguante e nos meses que não tem ‘r’ no nome (maio, junho, julho, agosto), porque aí não dá bicho”, aconselha o experiente artesão. O passo seguinte é escavar o vácuo na madeira utilizando o formão como ferramenta, dando forma à viola, e então a coloca para secar por aproximadamente um mês.

Enquanto o “corpo” seca, tira-se o tampo de uma figueira branca, preferencialmente à beira de um rio, pois assim a madeira é mais macia e apropriada. Ela é lavada e colocada na prensa para não “embodocar”. Após a secagem natural destas duas peças, prega-se o tampo ao corpo, necessariamente na lua crescente, a fim de aumentar a “zuada”. 

Antigamente esta colagem era feita com grude de sumbaré (espécie de batata), mas atualmente se utiliza cola comum. Por fim, são acrescentados os acabamentos feitos de cedro (cavaletes, escraveiras, trastes) e as cordas de nylon. E então, após ser lixado, o instrumento está pronto para ser tocado. “Ih, demora, sô! Vai um bocado de dia”, reflete Tuti após descrever etapa por etapa.

Violas de Cocho confeccionadas pelo Mestre Tuti. Chapada dos Guimarães - MT. © Lautaro Actis, 2018
Violas de Cocho. © Lautaro Actis, fevereiro de 2021.

Atualmente, ele possui duas violas de cocho, pelas quais nutre grande estima. Guarda na memória as canções e melodias, porém sua cabeça também convive com frequentes dores, insônia e labirintite. Para conseguir dormir, toma oito gotas de rivotril todas as noites, há quatro anos. “Já consultei um médico que trocou o remédio. Tomei esse outro durante cinco dias e foram cinco noites sem dormir”, revela às gargalhadas.

Mesmo quando trata de assuntos delicados, não abre mão do riso largo e do humor. Admite com franqueza os excessos que cometeu na juventude, como o primeiro porre de pinga aos 12 anos. A experiência negativa lhe afastou do álcool até a maioridade, porém quando voltou a beber, demorou a parar novamente. Seu Tuti, como tantos brasileiros, tem que lidar com o alcoolismo.  

Bebeu ininterruptamente dos 18 aos 50, além de fumar aproximadamente 40 cigarros de palha por dia. Na época das maiores bebedeiras, chegava a passar alguns dias fora de casa e mal se alimentava. Tomava pinga pura ou álcool com água e um pouco de açúcar. “A pinga eu bebia e voltava e o álcool bebia e parava. Mas aí parei com o álcool porque fazia muito mal pra mim, dava muita dor de cabeça, fiquei só na pinga mesmo”.

Embora diga que perdeu muito tempo com bebeção e farra, não demonstra maiores remorsos, argumentando que “na mocidade é bom farrear, beber, brincar e aproveitar enquanto é vivo”. Enfim, quando se deu conta que precisava cuidar da saúde, parou definitivamente e já está há mais de 20 anos sem beber ou fumar. “Tava fazendo mal, senão eu tava bebendo até hoje”, diz em tom bem humorado, e complementa que “ a vida é melhor que a pinga”.

Realmente, apesar das reviravoltas, a vida aguerrida que levam neste oásis de cerrado cercado pelo deserto de lavouras é motivo de orgulho. O cheiro da fumaça e do tempero no fogão à lenha; a ciência de segredos e poderes das plantas; a paciência de compreender o tempo entre a semente e o fruto; a carne de porco caipira na lata de banha alocada na cozinha de chão batido por onde circulam galinhas; o reconhecer de cada canto ou coaxar, bem como seus implícitos significados meteorológicos e cotidianos. Saberes ancestrais a partir de uma experiência empírica e respeitosa com o mundo.