As histórias de Kamukuwaká e Yakuwixeku

Historiadores ensinando a história de Kamukuwaká às crianças, antes da depredação. Fotografia_ Gabriele Viega Garcia_2014.

Kamukuwaká, segundo a cosmogonia Wauja, teve a casa transformada em pedra por Kamo (o Sol), pois este invejava sua força e beleza. O guerreiro defendeu seu povo dos ataques do inimigo e contou com a ajuda de pássaros para abrir um buraco no teto rochoso, por onde conseguiram fugir e se abrigar no céu. E lá ele aprendeu e transmitiu os ensinamentos sagrados que norteiam a conduta de alguns povos xinguanos. 

Em outro tempo, a história de Yakuwixekú, também personagem mítico da cultura Wauja, relata uma nova subida ao céu, onde aprenderam tudo sobre o Pohoká, rito de iniciação de jovens lideranças centrado na furação de orelhas. Aliás, o Pohoká acontecia tradicionalmente na Gruta de Kamukuwaká, que recebe este nome justamente porque seria a casa atemporal do guerreiro que enfrentou Kamo, inclusive o teto da gruta possui o referido buraco aberto pelos pássaros. 

Livro-Ilustracao-de-Kamukuwaka-Autoria-de-Kuchama-Waura

Neste sentido, com o objetivo de preservar e redinamizar os mecanismos de transmissão destas histórias que estão na origem dos códigos morais, sociais e ritualísticos Wauja, foi publicado o livro “As histórias de Kamukuwaká e Yakuwixeku”, de autoria compartilhada entre as aldeias que compõem a etnia.

A obra resulta de expedições, entrevistas, oficinas, debates e pesquisas que ocorrem desde 2014 e é parte de um projeto maior de valorização do patrimônio ancestral, histórico, arqueológico e paisagístico do povo Wauja, desenvolvido de maneira colaborativa entre pesquisadores indígenas e não indígenas, apoiados pelo Instituto Homem Brasileiro – IHB.

Livro-Ilustracao-de-Kamukuwaka-subindo-ao-ceu-Autoria-de-Arakuni-Waura

“É importante que os Kajaopa (não indígenas) passem a conhecer as narrativas que nós, Wauja, guardamos em nossas memórias sobre este lugar, que é Patrimônio Cultural do povo brasileiro”, contextualiza Yakuwipu Waurá, uma jovem liderança da etnia, sobre o fato do livro ser em português. 

A gruta, cujo espaço físico está ligado às narrativas e rituais de algumas etnias xinguanas, está ironicamente localizada fora do Território Indígena. Aliás, é reconhecidamente uma área de circulação, exploração, sociabilização e reprodução cultural,  inclusive é tombada como Patrimônio da União por sua relevância arqueológica, histórica, antropológica, cultural e ambiental.

Registro de narrativas atemporais por jovens e historiadores tradicionais. Fotografia_ Tamuwã Waurá,_2014

As paredes apresentam gravuras rupestres com grafismos usados ainda hoje pelos alto-xinguanos em pinturas corporais e objetos do dia-a-dia, como cerâmica e cestaria.  Entretanto, em 2018, parte destas gravuras foi alvo de depredação. Elas foram gravemente danificadas com a utilização de ferramentas, porém os responsáveis ainda não foram identificados.

Na ocasião, a pesquisadora em Antropologia Cultural, Emilienne Ireland, ressaltou que a ação era “conceitualmente equivalente à profanação da Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, e à destruição de todos os exemplares da bíblia, ou seja, a eliminação do testemunho, do veículo e da mensagem”.

Gruta do Kamukuwaká, antes da depredação. Fotografia: Gabriele Viega Garcia/2014

A depredação e a localização da gruta fora do Território Indígena evidenciam a urgência de se registrar estas narrativas históricas, tanto para preservar memórias ancestrais salvaguardadas pela tradição oral quanto no sentido de publicizar este conhecimento.

“Se não registrar, a história pode acabar. A gente acredita que Kamukuwaká ainda está lá, apenas ficou invisível. Essa história da nossa cultura faz bem para a mente do povo Wauja”, explica Tukupé Waurá, outra jovem liderança Wauja.

Os Wauja, principalmente os mais jovens, estão utilizando ferramentas de aprendizagem e registro não indígenas – como o livro escrito e conteúdos audiovisuais – para fortalecer a memória, a cultura, a identidade e o território do povo.

O projeto do livro foi selecionado no edital MT Nascentes, realizado pela Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer (Secel-MT) com recursos da Lei Aldir Blanc. E também contou com o apoio financeiro e assessoria do Instituto Homem Brasileiro (IHB).